Enquanto pesquisadores do mundo da criança, nós educadores, sabemos que a brincadeira é essencial para a formação de um adulto mentalmente saudável, sabemos que o aprendizado da criança depende das suas oportunidades para brincar, sabemos que a criança experimenta o mundo e, consequentemente, o conhece através da brincadeira, enfim, sabemos de mais uma série de razões práticas, já estudadas, para defender o brincar na vida da criança. Por isso, o adulto tem a obrigação de proporcionar para a criança o espaço para brincar, defende o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, a sociedade se esqueceu de uma simples questão primordial: o brincar pressupõe uma relação verdadeira entre seres humanos, pressupõe a transmissão cultural do saber do mais velho para o mais novo, pressupõe o afastamento do mundo da seriedade adulta no qual precisamos produzir, para irmos a um mundo no qual não somos peças do sistema, um mundo mentalmente saudável.
Diante dessa reflexão, o único caminho que conhecíamos para resgatar o prazer e a magia do brincar nas pessoas da nossa comunidade, era a brincadeira na rua, que alguns de nós conhece bem, pois ela ainda existiu e existe em algumas infâncias. A brincadeira de rua não tem regras, a lei é da maioria, não tem hierarquia baseada no poder econômico ou social – são exigidos de todos muitos recursos para convivermos e tolerância para estarmos com diversos tipos de pessoas, a rua é de todos! A brincadeira de rua é difícil, não é em qualquer brincadeira que se pode entrar tendo qualquer idade, exige esforço, controle do corpo, exige que se suporte uma frustração atrás da outra, exige desejo. Treinamos muito para pular corda, para correr mais do que o outro, para respirar baixo quando se está escondido, para jogar a pedra na amarelinha com a força exata para que fique no lugar em que queremos e para, apesar de tanto esforço, muitas vezes perdermos, levantarmos e tentarmos novamente. A brincadeira de rua exibe, escancara, para crianças e adultos, suas dificuldades, suas limitações. Será esse o motivo de seu desaparecimento? Talvez seja mais fácil brincar sozinho ou não brincar para que não se corra riscos, não se rale os joelhos, para que a criança não chore.
Penso que muitos adultos não saibam mais brincar. Talvez sejam excepcionais cuidadores: pais e professores que lêem, estudam, discutem e refletem sobre a melhor educação para as crianças. Mas o quê podemos ensinar, de quem podemos cuidar e o quê as crianças lêem nos nossos atos se não brincamos verdadeiramente com elas? Como acessar uma parte dentro de nós que seja menos racional, menos objetiva, menos ocupada e com mais tempo e mais magia, para então termos acesso ao mundo das crianças? Como acordarmos o menino, o moleque, para segurar a mão do adulto que balança, seguindo os conselhos de Chico Buarque?
Bom, nós educadores-brincantes, decidimos não permitir que a brincadeira desapareça. Decidimos provocar a reflexão sobre a desvalorização do mundo da brincadeira, quando não o levamos a sério. Sabemos bem que só nos aproximamos do mundo da criança e produzimos com elas relações verdadeiras porque brincamos com muita dedicação e seriedade, porque enfrentamos nossas limitações e descobrimos diariamente, a magia do brincar, a beleza do mundo do jogo, a alegria de estarmos juntos com a meninada. Ensinamos a suportar as frustrações, suportando perder, ensinamos a cair e levantar, fazendo o mesmo, ensinamos a cuidar das nossas feridas e a rir dos joelhos ralados com nossos joelhos no chão, ensinamos a valorizar as brincadeiras culturais – essenciais para a formação de qualquer ser humano – indo para a rua brincar! Enfim, enquanto brincamos, aprendemos: a desviarmos das boladas da vida, a desejarmos conquistar a bola ou a bandeira e por isso nos esforçamos além de nossos limites, a cantar junto, a pular no ritmo em que a corda bate, e a assumir que jogar peão de corda é dificílimo e que nunca deixaremos de tentar!
Por Letícia Fernandes, 2010